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ESTADO É LAICO, MAS O RÁDIO NÃO

Escrito em 17 de maio de 2007 por Marcelo Delfino.

Entre tantas coisas ditas ao papa Bento XVI em sua recente visita a São Paulo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que, segundo a Constituição, o Estado brasileiro é laico. Ou seja: não tem religião oficial.

Será mesmo, Sr. Presidente?

Embora possamos concordar que o Estado brasileiro não possui mesmo uma religião oficial, pode-se suspeitar que algumas autoridades públicas podem estar concedendo privilégios não a uma, mas a alguns grupos religiosos, de várias tendências.

No que tange ao nosso assunto corrente, a radiodifusão, pode-se questionar até que ponto a Carta Magna está sendo cumprida.

O espectro eletromagnético é um bem público, pertencente à toda a sociedade. Hoje, as licenças para operação de canais de rádio e de TV são concedidas pelo Ministério das Comunicações, mediante aprovação do Congresso Nacional.

Se a Constituição prevê que o Estado é laico, deve-se supor que nenhum órgão público deva conceder privilégios a alguns grupos religiosos e negar a outros.

Portanto, deve-se abrir o debate. Conceder outorgas de rádio e de TV a grupos religiosos ou permitir que estes comprem ou arrendem emissoras é ou não é um privilégio concedido a grupos religiosos, em detrimento dos demais?

Um simples passeio pelas listas de rádios AM e FM da cidade do Rio de Janeiro (e do entorno) permite encontrar uma série de emissoras concedidas, vendidas ou arrendadas para vários grupos religiosos.

Os evangélicos controlam hoje 8 AMs (Relógio, Copacabana, Tamoio, Nova AM, Capital, Boas Novas, Continental e Grande Rio) e 6 FMs (93 FM, Melodia, FM 104,5, Rede Aleluia, Gospel FM e Novo Tempo, esta última em fase de legalização). Há também a espírita Rio de Janeiro AM e a espiritualista Brasil AM. Por fim, a Igreja Católica controla diretamente uma FM (Catedral) e indiretamente uma AM (Carioca).

Na TV, o Rio tem vários canais concedidos ou arrendados a grupos religiosos. Temos os canais católicos Canção Nova, Rede Vida e TV Aparecida, e os evangélicos RIT e Rede Gospel.

O que normalmente ocorre é que a programação dessas emissoras, ainda que não oficialmente, exclui a participação dos adeptos de outros credos e os que não tem credo algum.

Tudo isso usando o espectro eletromagnético num país onde o Estado é laico...

Inclua-se também na lista de TVs as redes Record e Mulher. As duas são emissoras convencionais, porém controladas de perto por um mesmo bispo evangélico.

Há ainda a acusação de as Organizações Globo terem uma tendência católica. A despeito das novelas espíritas... E a despeito de isso ser mais propriamente uma lógica comercial de privilegiar a audiência maior, como fazem com as torcidas do Flamengo e do Corinthians. Se estivesse no Oriente Médio, a Globo preferiria mostrar os passos do alaitolá supremo do Irã aos passos de Bento XVI.

Se o Estado brasileiro é laico, qual o motivo para justificar este panorama religioso na radiodifusão do Rio e do Brasil?

Talvez seja a hora de os religiosos brasileiros aprenderem que, se pretendem testemunhar seus credos e pretendem fazer a diferença numa sociedade plural como a nossa, talvez o melhor seja fazer isso fora de guetos, como são as suas emissoras.

Há o que aprender com religiosos de outros países. No México, não há uma única rádio católica. Mas mesmo lá, cantores vinculados à Renovação Carismática Católica repercutem seus trabalhos fora dos guetos. É o caso do cantor Martín Valverde. Certa vez, um bispo católico perguntou a dirigentes de rádios locais por quê não tocavam músicas católicas. "Porque não temos algo de qualidade para tocar", foi a resposta. Então o tal bispo pediu a Valverde que gravasse um disco de rock, com qualidade técnica comparável aos melhores discos convencionais. O disco que Valverde gravou, o excelente No Muere con los Tiempos, foi lançado em 1997 e contou com a participação de músicos competentes. Alguns deles, integrantes do famoso grupo de rock Maná, que nunca foi ligado diretamente à Igreja.

Haveria ainda vários exemplos de artistas de temática religiosa que conseguiram falar para fora dos seus guetos. Entre eles, os grupos de rock americanos P.O.D. (evangélico) e Shelter (hare-krishna). Ambos elogiados pela crítica, mesmo por quem não compartilha da crença deles.

Talvez seja a hora de tirar os religiosos brasileiros da comodidade dos guetos, para fazer uma faxina no dial e para que só fique no ar quem tem realmente algo a dizer. Seja religioso ou não.

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