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O GAGÁ CONTEMPORÂNEO
Escrito em 29 de setembro de 2009 e atualizado em 30 de setembro de 2009 por Marcelo Delfino.
Receita:
Primeiramente, compre uma rádio FM numa cidade grande. Se houver dificuldade para comprar uma, mas tendo uma fortuna disponível, arrende uma FM. Não se preocupe. O Ministro das Comunicações não fará nada para impedi-lo. Nem a Anatel.
Selecione como primeira base para a programação os maiores sucessos da música lenta internacional e da música brega americana. Não pode faltar músicas de Lionel Richie. Cuidado para não colocar jazz!
Ponha como segunda base para a programação os maiores sucessos da MPB dos anos 60 até os dias atuais. Dos medalhões que não fazem sucesso hoje, selecione apenas os sucessos antigos. Nada de colocar músicas dos discos mais recentes, principalmente de selos pequenos. Dos artistas realmente esquecidos, escolha apenas um sucesso de cada um. Tipo Apenas um rapaz latino-americano, de Belchior, e Papel Marché, de João Bosco.
Para atrair um público de meia idade, você pode acrescentar sucessos exaustivamente tocados nas rádios pop nos anos 80 e 90. Hoje as rádios pop tocam essas músicas no máximo em programas de flash-backs.
Se sua rádio não for de flash-backs, ponha todos os nomes recentes da MPB que se pareçam com veteranos (tipo Jorge Vercilo, que parece Djavan), artistas que façam cover de si mesmos (tipo Claudio Zoli, até hoje escorado no sucesso Noite do Prazer, de sua ex-banda Brylho) e todos aqueles nomes muito bem marqueteados por gravadoras tipo Trama. Nada de colocar músicas de discos de selos mais consistentes, tipo Biscoito Fino.
Acrescente músicas do rock dos anos 80, tanto de bandas brasileiras como de gringas. Mas só coloque as músicas mais pop e as lentinhas. Nada de músicas com cinco minutos ou mais (muito menos progressivas), músicas pesadas, bandas punk ou próximas da sonoridade punk.
Ponha também canções lentinhas ou românticas que tenham ganho ou concorrido ao Oscar de Melhor Canção. Mesmo de filmes infantis.
Leia o livro Eu Não Sou Cachorro, Não, de Paulo Cesar de Araújo, e depois ponha na programação alguns nomes da música brega elogiados no livro. Não pode faltar Odair José e outros artistas surgidos na cola da Jovem Guarda, mesmo que não tenham participado do movimento. Ponha também artistas bregas elogiados por Hermano Vianna.
Se o público-alvo da cidade onde fica a rádio for pouco exigente, acrescente todos os sucessos românticos da dupla Sullivan & Massadas que fizeram sucesso nos anos 80 e 90, tipo Whisky a Go-Go (Roupa Nova), Me dê motivo (Tim Maia), Deslizes (Fagner), Um dia de domingo (Gal Costa e Tim Maia) e Talismã (Leandro & Leonardo). Não esqueça também das trilhas das novelas da TV Globo e das músicas românticas gravadas pelo elenco da BMG (ex-RCA) nos anos 80, como Sandra de Sá, José Augusto e os já citados Fagner, Roupa Nova, Gal Costa e Tim Maia.
Como cereja no bolo, inclua na programação Radio Ga Ga, do Queen.
Se sua rádio for de MPB, exclua apenas os artistas estrangeiros. Deixe todos os outros. Mesmo os bregas e as músicas românticas.
No departamento de jornalismo, adote uma linha editorial neoliberal. Tome as rádios CBN e Band News como parâmetro.
Para manter sua rádio, arrume um patrocinador que a banque, e ponha o nome do patrocinador na rádio. Se não tiver, monte um departamento comercial igualzinho ao de uma rádio pop.
Por fim, faça de tudo para manter os endinheirados Picaretas de Cristo bem longe de sua rádio. Se vire.
Pronto. Você já tem a sua rádio gagá contemporânea.
Esta receita está sendo seguida à risca pelas rádios de música contemporânea no Brasil, desde os anos 90.
As rádios de música contemporânea (incluindo as rádios de MPB) são o que de mais sofisticado houve no rádio brasileiro até meados dos anos 90, década em que foram sucateados diversos estilos de rádio, como o rádio rock. A partir daquela década, a aplicação ferrenha desta receita sucateou o chamado rádio "adulto-contemporâneo", que tem teoricamente como público-alvo o adulto de meia idade urbano. Nós do TRIBUTO não usamos o termo "adulto-contemporâneo". Chamamos este estilo de rádio de música contemporânea, porque cremos que nada impede que uma criança, adolescente ou jovem aprecie música dita "de adulto".
No Rio de Janeiro, a decadência das rádios de música contemporânea começou nos anos 90, mas está tendo seu ápice agora. Uma das nossas primeiras derrotas foi o fim da Nacional FM 100,5, ainda nos anos 80, substituída pela RPC. A antiga rádio Tupi FM 96,5 virou rádio romântica, rebatizada posteriormente para Nativa FM. Em 1992, a nova Nacional FM 93,3, que era excelente, foi substituída pela evangélica El Shadai, hoje 93 FM. A JB FM 99,7, que até meados dos anos 90 era altamente sofisticada (tinha até programas de jazz e de música clássica) virou uma rádio de rest sellers com a mesma estrutura interna da extinta Cidade.
Na atual década, o modelo de rádios de música contemporânea caiu de vez. Na prática, podemos chamá-las de rádios do estilo gagá contemporâneo. Daí o título do artigo. A Manchete FM 89,3, que teve algumas fases de gagá contemporânea, virou Manchete Gospel, depois Orestes Quércia comprou a rádio e a transformou na MPBística Nova Brasil FM, depois a arrendou para a Igreja da Graça, que criou a Rádio Deles (do Quércia e do missionário RR Soares), depois a Nova Brasil reencarnou, e atualmente a Rádio Deles vive sua reencarnação. A Globo FM 92,5 foi transformada em repetidora da CBN. A Fluminense FM 94,9, que teve uma breve fase gagá contemporânea, foi arrendada pela Band News. A Alvorada FM 95,7 (ex-Del Rey) foi arrendada pelo grupo Salgado de Oliveira (que criou a franquia populista Mania FM) e depois foi arrendada pelo grupo Dial, detentor da franquia Paradiso FM, hoje patrocinada e rebatizada para SulAmérica Paradiso. Por fim, o maior golpe da história: a Antena 1 Lite FM 103,7, única rádio que tocava flash-backs dos anos 50 e 60, foi arrendada pela Sérgio Cabral AM (mais conhecida como Super Rádio Tupi), que transferiu para ela a franquia Nativa FM e transformou a antiga Nativa FM em sua repetidora.
Hoje, o decadente universo das rádios gagás contemporâneas se restringe a três rádios. A MPB FM 90,3, outrora um modelo internacional de rádio MPBística, se rendeu à música brega, incluindo Odair José na programação. Mais ou menos como a (duas vezes extinta) Nova Brasil, que tocava Ivete Sangalo. A SulAmérica Paradiso faz uma seleção bem azeitada e calminha, mas com irrelevâncias de fim de tarde, sem o brilho da saudosa Antena 1 e patina nos índices de audiência. Por fim, a JB FM e sua seleção de rest sellers típicos de banquinha de R$ 9,90 das Lojas Americanas sobrevive graças ao departamento comercial herdado da extinta Cidade.
Assim, as rádios de música contemporânea (ou gagás contemporâneas) continuam em sua esclerose múltipla, rumo à indigência cultural e talvez à extinção. Pagodeiros, funqueiros, axezeiros, politiqueiros, cartolas e bregas em geral agradecem.
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