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FMs "OUNIUS" E O JOGO DO PODER

Escrito em 19 de junho de 2005 por Alexandre Figueiredo.

Muito estranha a ênfase do radiojornalismo em FM, num momento em que o noticiário hit-parade que recentemente martelou feito bate-estacas sobre o ocaso do papa João Paulo II e a ascensão de seu sucessor Bento XVI, de repente despejou, tendenciosamente, um monte de notícias sobre corrupção na política brasileira. Parece muita coincidência que a Aemização das FMs dê tamanha largada numa época dessas, e vermos coordenadores e superintendentes de rádio se comportando que nem gerentes de banco acerca de seus projetos (não por acaso, os grandes banqueiros são os maiores anunciantes dessas FMs).

A "onda de corrupção", que a grande imprensa aponta como "novidade" - como se acreditassem que corrupções tão ou mais graves nunca aconteceram desde o Brasil colônia; perto de episódios como a política da Velha República, a corrupção do PT é apenas algo menor - , está sendo o filão de jabá das FMs "ounius" ou de telejornais "reciclados" como o Jornal Bandeirantes e o Jornal da Globo. Jornalistas engravatados mais uma vez se colocando como senhores da opinião pública. E agora usando o rádio FM como sua vitrine de auto-promoção.

A relação radiojornalismo e crise política lembra o esquecido fenômeno que ocorreu em outubro de 1963. Nele foi instalado o programa "Rede da Democracia", realizado por um pool entre o Grupo Jornal do Brasil, as Organizações Globo e os Diários Associados. Era um arremedo conservador de outro programa radiofônico, "Rede da Legalidade", transmitido em 1961 por uma cadeia de rádios encabeçada pela Nacional e Mayrink Veiga e que tinha como porta-voz Leonel Brizola, que pediu para garantir a posse de João Goulart, ameaçado de não assumir o mandato após a renúncia de Jânio Quadros. A "Rede da Democracia" era um programa que pedia o contrário, ou seja, promovia um debate sobre os meios de tirar Jango do poder.

A "Rede da Democracia" era o retrato daquela época. Nesse programa, empresários, militares, políticos e outras pessoas importantes reclamavam da crise de João Goulart que, como o presidente Lula hoje, alternava, em seu governo, medidas conservadoras e propostas progressistas. Tanto um como outro despertaram a ira das forças conservadoras, que precisavam de um canal mediatizado que pudesse direcionar a opinião pública para um suposto consenso direitista.

Atualmente, a medida segue um outro contexto. Sem declarações apaixonadas nem manifestos panfletários, a "rede da democracia" orquestrada "independentemente" pela CBN, Band News e Rádio Bandeirantes - com o respaldo da Jovem Pan e Transamérica, entre outras similares - tem as características sutis da grande imprensa atual, que seguem a mesma "racionalidade" dos políticos tecnocráticos do PSDB. Aparentemente, há uma tolerância à esquerda e uma objetividade que, à primeira vista, parece acima de qualquer suspeita. Mas nos bastidores do poder, essa grande imprensa se mostra extremamente conservadora, e sutilmente podemos apontar indícios. Há uma histeria na cobertura sobre a corrupção do governo Lula, que nas edições de 15 de junho de 2005 das revistas Isto É, Época e sobretudo a ultra-direitista VEJA, apontavam o governo como "falido". E essa imprensa desejaria um governo mais "esquerdista"? NÃO. Elas querem um governante mais conservador, que atenda aos interesses das elites das quais a grande imprensa é porta-voz.

As rádios 'all news' seriam, na verdade, uma forma do poder econômico, expresso na grande mídia, em manipular a opinião pública para ela redirecionar seu senso crítico de acordo com a linha neoliberal de seus veículos, auto-proclamados "independentes". Seria uma forma também de promover no Brasil o pouco discutido fenômeno da overdose de informação, que no exterior inquietam pensadores renomados como Noam Chomsky, Paul Virilio e Umberto Eco. Nos últimos anos, teóricos de esquerda como Beatriz Kushnir, Marilene Felinto, Daniel Herz e Jurandir Machado da Silva tentam desfazer os mitos românticos da grande imprensa que ainda deslumbra muita gente no Brasil.

Não devemos esquecer, por outro lado, que a Aemização das FMs é herdeira direta da farra de concessões políticas (mas nem sempre partidárias, podendo ser apartidárias e até "idôneas") de FM do governo Sarney. A Aemização também seria uma outra etapa de uso do poder político das FMs depois das redes via-satélite que dizimaram várias emissoras de rádio regionais pelo Brasil.

Dupla transmissão AM/FM - Fábrica de milionários cuja gravidade ninguém sente

Um fenômeno tão grave quanto os casos de corrupção é a dupla transmissão AM/FM que, sob o consentimento do então ministro das Comunicações do governo FHC, Pimenta da Veiga, alimentou o poder das redes CBN e Rádio Bandeirantes, além de outras regionais como a Itatiaia, de Belo Horizonte, e a Metrópole, do corrupto-sensacionalista Mário Kertesz, de Salvador.

Ninguém se atenta para a gravidade que tem esse fenômeno, que teóricos e comentaristas de mídia aceitam com ingenuidade bastante infantil, seja por um inexplicável "aumento de cobertura" - "cobertura" de quê? De bairros, de demandas? - , seja por uma suposta interatividade ou uma pretensa modernização de audiência ou tecnologia.

A dupla transmissão AM/FM é a verdadeira fábrica de fazer dinheiro dos grandes empresários de rádio, que através disso manipulam a opinião pública e cortejam os políticos conservadores. É tão escandalosa quanto o "mensalão" do governo e consiste num truque que nem mesmo jornalistas investigativos de renome conseguiram até agora denunciar. Vamos aqui desmontar a farsa das tais rádios "AM+FM", com o sinal de "mais" para dar um aspecto "positivo" a essa vergonhosa fraude que torna o rádio AM como refém de um processo que só favorece as grandes FMs.

Na dupla transmissão AM/FM, são duas emissoras que fazem um único trabalho mas têm o faturamento natural como duas. Trabalham como uma e faturam como duas. É como faturar em dobro. Aos olhos da opinião pública são uma mesma emissora com duas "opções" de sintonia (embora, na prática, a ênfase seja sempre a sintonia FM). Mas, diante dos técnicos da Anatel e dos representantes do governo, são duas emissoras diferentes. O empresário pede ao Estado investimentos destinados às duas emissoras, mas em se tratando de uma mesma transmissão, boa parte do dinheiro do "investimento" vai para o patrimônio pessoal do empresário. Mais poder econômico, por conseqüência mais poder político.

A dupla transmissão AM/FM também visa combater o rádio AM e comprometer a democratização do rádio brasileiro. Com uma concorrência alienígena acomodada numa sintonia em FM, as AMs se enfraquecem e com isso a grande mídia promove a hegemonia e o monopólio mercadológico do rádio FM, em que as "grandes emissoras" sempre são favorecidas, a ponto de mandar seus próprios produtores e estagiários usarem pseudônimos nas mensagens para colunas de rádio, se passando por "simples ouvintes" respaldando essas emissoras. A tecnologia da Internet estimula o pseudo-anonimato.

A CBN chegou a dizimar algumas retransmissoras em AM, agindo, não obstante, contra a própria democracia. Em Brasília, a CBN AM tinha uma audiência seis vezes superior à da CBN FM, mas foi justamente a primeira que saiu do ar. *1 A dupla transmissão AM/FM da CBN, aliás, começou em Brasília, em 1994, na capital política do Brasil e num momento em que se ascendia a figura de Fernando Henrique, depois eleito para dois mandatos de cunho conservador.

No primeiro mandato, FH favoreceu politicamente a CBN. No segundo, a Rádio Bandeirantes entrou em cena. Em São Paulo, a RB chegou a uma ascensão vergonhosa através do método "a rádio que anda". A RB 90,9 paulista surgiu de uma FM pop santista, que pulou sucessivamente para duas cidades da Grande SP até instalar-se definitivamente na Avenida Paulista.

Recentemente, o Grupo Bandeirantes se associou ao empresário José Ernesto Camargo (Neneto Camargo), dono da 89 FM e de um perfil bastante conservador. Só para se ter uma idéia, o pai de Neneto foi um político do PDS, partido de direita resultante da antiga ARENA (partido governista da ditadura militar). O súbito crescimento do Grupo Bandeirantes, que comprou ou arrendou quase um quarto do rádio FM paulistano, já é um fenômeno comparável ao da associação da Rede Globo com a norte-americana Time-Life, nos anos 60. Na época, a posição de poder da Rede Globo permitiu que opositores realizassem uma CPI no Congresso Nacional. Hoje, porém, a imagem "modesta" da Bandeirantes na ciranda da grande mídia mal consegue inspirar uma sólida contestação da opinião pública, num tempo em que "jornalismo" virou pretexto para qualquer pecado da mídia.

Com a associação, a Bandeirantes, que antes tinha uma imagem de "moderada-progressista", pode fechar-se ideologicamente, a exemplo do que ocorreu com a VEJA, veículo de imprensa moderada que revelou nomes como Mino Carta e Mário Sérgio Conti e que hoje adota uma linha ultra-conservadora.

A CBN, por sua vez, foi um dos mais recentes patrimônios do empresário Roberto Marinho. Mesmo com ele vivo, a CBN, no entanto, preferiu seguir a linha "racional" de seus filhos ao invés do direitismo passional do patriarca, tão famoso na historiografia da mídia brasileira. Mesmo assim, em reportagens sobre a Seleção Brasileira de Futebol ou sobre a privatização de estatais, a CBN tende a seguir a linha tendenciosa-conservadora que sempre marcou as Organizações Globo.

Nota da Editoria:

* 1 - Em Brasília, a CBN ocupava dois canais do Sistema Globo: AM 750 e FM 95,3. Mas o grupo Globo vendeu a AM para o grupo Jovem Pan. Hoje, a CBN Brasília transmite apenas em FM 95,3, e na mesma cidade, a Jovem Pan AM 750 transmite uma programação jornalística semelhante à da matriz paulistana.

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